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No dia do árbitro, Márcio Rezende Freitas lembra histórias da carreira

Ex-árbitro mineiro critica postura das federações e da CBF e conta casos de erros, acertos, risco de morte e confrontos com jogadores.

Ninguém no mundo do futebol sofre mais que o árbitro. Enquanto jogadores e técnicos são idolatrados, os responsáveis pelo andamento das partidas são xingados, alvos das duas torcidas durante os 90 minutos de jogo. É praticamente impossível ver um árbitro de futebol ser elogiado pelas duas equipes após o apito final. Para piorar, a carreira chega ao fim quando completam 45 anos, já que esta é a idade limite permitida pela Fifa. Aposentados, colecionam histórias e mais histórias do mundo da bola, desde torneios mais simples de categorias amadoras até Copas do Mundo. Prova de tudo isso é Márcio Rezende Freitas, que, neste 11 de setembro, dia do árbitro, relembrou o início da carreira, as histórias vividas nos gramados, a politicagem que impede a regulamentação da profissão e a pressão sofrida nos campos. Além disso, fez um balanço de como está a profissão no Brasil.

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No futebol, a arbitragem não foi a primeira escolha do mineiro, de 52 anos, natural de Coronel Fabriciano. Márcio Rezende Freitas, como a grande maioria dos garotos brasileiros, queria ser jogador profissional. Para isso, tentou a sorte na base de clubes de Minas Gerais e de São Paulo. Zagueiro de estilo clássico, que lembrava o paraguaio Gamarra – como ele mesmo gosta de dizer –, o futuro árbitro começou a carreira no Acesita Esporte Clube, da cidade de Timóteo, interior de Minas. Depois, chegou aos juniores do Atlético-MG. Para jogar no Galo, teve que se mudar para Itaúna, a 100 quilômetros da capital mineira, pois o time havia montado um convênio com a universidade local. Lá, prestou vestibular. Depois, se formou em economia.

Márcio era o capitão e o cobrador oficial de faltas da equipe. Por problemas financeiros, o time acabou. Mas ele não ficou sem clube. Depois de vestir a camisa do Atlético-MG, passou pelo América-MG e pelo Votuporanguense, de São Paulo. Porém, uma lesão no tornozelo o impediu de continuar com o sonho de se tornar jogador profissional. Foi nesse momento que optou por fazer um curso de arbitragem, não para virar um profissional do apito, mas para ter mais informações sobre as regras do esporte.

– Nunca havia pensado em ser árbitro. Mas, quando parei de jogar futebol, no início da década de 1980, fiz um curso de arbitragem, mais por informação. Tinha jogado futebol minha vida inteira, mas não sabia nada de regra, o que era um absurdo. Isso acontece até hoje com os jogadores de futebol, o que é outro absurdo. Em 1981, fiz o curso, mais por informação. Mas só fui começar a apitar futebol mesmo em 1983.

No início, a arbitragem representava um complemento da renda que tinha como funcionário de um banco. Em 1983, depois do curso, Márcio Rezende foi inscrito no DFAC (Departamento de Futebol Amador da Capital), mesmo ano em que começou a atuar na várzea de Belo Horizonte. Ficou durante três anos no futebol amador. Nesse período, apitou “tudo o que se possa imaginar”, mas dois fatos foram marcantes: o primeiro jogo em que foi escalado e que nunca aconteceu, por causa de uma forte chuva, e a final de um torneio, em 1986, que foi o último jogo que o pai o viu apitar.

– Devo tudo o que consegui à várzea de Belo Horizonte. O primeiro jogo em que fui escalado foi no infantil, no domingo pela manhã, entre Santa Cruz e Ferroviária. Choveu tanto em Belo Horizonte, de sábado para domingo, que a trave caiu. Foi uma decepção, o primeiro jogo. Na época, achei que Deus havia me dado um sinal para não mexer com aquilo. Depois, vieram outros jogos. De 1983 a 1986, no amador, apitei tudo o que se possa imaginar.

O profissionalismo

A final do torneio amador de 1986 foi decisiva para o futuro de Márcio Rezende Freitas no futebol. Ao término do confronto, ele deu uma entrevista a uma emissora de rádio e declarou que seria árbitro do quadro da Fifa. Já tinha certeza de que queria aquilo. E os campos da várzea viraram os grandes estádios do Brasil e do mundo. As competições amadoras de Belo Horizonte se tornaram campeonatos estaduais, nacionais e internacionais. Desse período, se lembra de algumas situações perigosas.

A primeira foi em Honduras, em jogo válido pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 1994. O clima para o confronto decisivo entre os donos da casa e o México estava tenso, pois Hugo Sánchez, jogador mexicano, havia dado uma declaração que ofendeu o povo de Honduras. Depois da partida, os torcedores queriam bater nos jogadores e no trio de arbitragem.

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Márcio na época que ainda atuava como árbitro internacional.

– Vejo muito árbitro falar que não, mas você tem que se informar, tem que ler os jornais da cidade, tem que saber de tudo o que acontece. Não dá para ficar alheio. E o Hugo Sánchez havia dito que Honduras era um chiqueiro e questionado como a Fifa permitia um jogo naquele lugar. Em campo, Hugo Sánchez pegava na bola, e todo mundo em cima dele. Ele dizia: “Resende, hay que me proteger”. Eu dizia: “Proteger? Li o jornal e vi o que você disse. Se vira, pede para sair”. Mas era um craque, fez dois gols.

O segundo caso foi em Medelín, na Colômbia. Após expulsar Aristizábal, ídolo do time colombiano, a torcida se revoltou. Só foi possível deixar o gramado com a presença de um veículo blindado do exército colombiano. Assim que chegou ao hotel, pegou um táxi e foi para o aeroporto da cidade. Porém, no meio do caminho, o veículo apresentou problemas e ficou no meio da estrada. Foi o momento em que mais temeu pela vida, já que poderia sofrer algum tipo de represália por ter expulsado o ídolo do Nacional.

– Logo no começo, Aristizábal quis me testar. Eu era menino, tinha 32 para 33 anos. Ele se jogou na área. Dei um amarelo para ele. Tudo o que se pode imaginar de palavrões ele falou comigo. Eu era novo, mas não era burro. Com 55 mil pessoas, se eu o expulsasse naquela hora, com 7 minutos de jogo, estaria morto. Disse a ele: “Você já está expulso, mas quem vai decidir a hora que você vai sair do campo sou eu”. Eles tomaram um gol, partiram para cima e empataram o jogo. No segundo tempo, se jogou na área de novo. Partiu para cima de mim, falou até que era o chefe do cartel e que iria me matar. Só levantei o vermelho.

O profissionalismo trouxe, também, o momento mais marcante da carreira: a Copa do Mundo de 1998, na França. Ele também esteve presente na edição anterior, nos Estados Unidos, mas apenas como stand by. Também foi ao Mundial de 2006, mas como assessor do quadro de árbitros da Fifa. A Copa de 1998 foi especial, não só porque ele atuou, mas por poder estar no jogo que marcou a estreia dos donos da casa da competição.

– Me marcou muito, porque me deu uma tremedeira antes do jogo, coisa que nunca tive. Tremia antes da partida. O pessoal cantava a Marselhesa, e só me vinha a imagem do campo da Ferroviária. Ventava muito na cidade, um vento de quase 70 quilômetros por hora. O vento carregava o som do apito e, às vezes, ninguém ouvia. Tive que correr mais, estar mais próximo. Isso marcou muito, porque fiz uma boa arbitragem.

Naquele jogo, estava Zinedine Zidane, camisa 10 e gênio da França. Porém, para ele, Zidane não foi o jogador mais habilidoso que viu atuar. Na opinião do ex-árbitro, Zico foi melhor.

– O jogador mais habilidoso que vi jogar e que, infelizmente, não apitei nenhum jogo dele, foi Zico. Fiz jogos do Júnior, que foi um craque também, mas Zico era fenomenal. O cara jogava muito, muito mesmo. Zico me marcou muito.

Pressão e cobrança constantes

Quando acertam, escutam que não fizeram mais que a obrigação e são pouco lembrados pelo êxito. Quando erram, passam um bom tempo criticados e cobrados, seja por torcedores ou pela imprensa especializada. Para Márcio Rezende, não há problema em ser criticado. Se houve o erro, a crítica é válida. O problema está na forma como a crítica é feita. Ele lembrou-se do caso ocorrido no Campeonato Brasileiro de 2005, quando, no jogo entre Corinthians e Internacional, no Pacaembu, não marcou um pênalti em Tinga e ainda expulsou o jogador do time gaúcho por entender que ele havia simulado a falta. Para ele, em alguns casos, sempre existe uma coisa a mais na crítica.

– O que dói, às vezes, é a contundência com que as pessoas te atacam, sem te conhecer. O objetivo é não errar. Mas a contundência das pessoas que não gostam de você, na hora que têm a chance, e é no seu erro que têm essa chance, é asquerosa. A crítica tem que existir. Se errou, tem que ser criticado, mas a contundência é muito grande. Você vê que há uma coisa a mais que a crítica.

A vida depois do apito

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Atualmente Márcio é comentarista de arbitragem da Rede Globo em MG.

Aos 45 anos, Márcio Rezende Freitas pendurou o apito. Não por vontade própria, mas por determinação da Fifa. E ele concorda que a idade certa para deixar os gramados é essa. O árbitro pode até começar mais cedo, mas 45 anos é o limite para o profissional.

Com as lembranças do passado, Márcio está certo de que a infraestrutura segue como o principal problema enfrentado pelos árbitros. Atualmente, o investimento é maior do que aquele da época em que atuava, mas ainda falta muita coisa para melhorar.

– O árbitro é quase um homem feito por ele mesmo. Na minha época, principalmente, não havia nada. O que os árbitros têm hoje é infinitamente maior do que tínhamos na época, porque não tínhamos nada. Mas eu, como tinha uma visão progressista, já tinha personal trainer contratado. Eu pagava. Me dedicava, tirava parte do meu dia para treinar. Estava às 6h na academia, três vezes por semana. Sempre investi na carreira, com curso de línguas e outras coisas. As federações não querem assumir, a CBF não que assumir, ninguém quer assumir, porque é um ônus, e todo mundo só quer bônus. A arbitragem, enquanto não mexer no cerne da questão, ou seja, dar uma qualidade profissional, buscar uma regulamentação, com boa remuneração, com condições e horas de treinamento, não vai mudar. Se o jogador faz um jogo no domingo, na segunda, faz um regenerativo. O árbitro não tem tempo. Chega ao aeroporto e tem que ir para o trabalho dele, porque tem de trabalhar. Na terça, já recebe a escala e vai apitar na quarta. É jogo em cima de jogo, e não há preparação. Ninguém se preocupa com isso.

Na época em que apitava, foi presidente da Anaf (Associação Nacional dos Árbitros de Futebol) por dois mandatos. Nessa época, foi elaborado um projeto para garantir maior infraestrutura aos árbitros brasileiros.

paulocesaroliveira_reu– Briguei com todo mundo. Briguei com a CBF, com o presidente da comissão de árbitros. O projeto já foi aprovado no Senado. Agora, está na Câmara, e já houve uma reunião para discussão da regulamentação desse projeto. Mas já tem 15 anos que isso se arrasta. Não vai ser fácil. Não creio que isso vingue por agora, mas a luta é longa. É um projeto que existe, que foi escrito, desenhado e entregue. Fui a Brasília várias vezes para discutir com deputados e senadores, mas é difícil, porque a própria bancada que ali está não deixa caminhar.

Na opinião de Márcio Rezende, a arbitragem brasileira é razoável. Poderia ser melhor, mas a CBF não tem interesse em investir na área. O problema não é financeiro, trata-se de uma questão política.

– Há um investimento, que não é suficiente, mas já há um investimento, uma preocupação. A CBF tem muito dinheiro para muita coisa, mas não tem dinheiro para a arbitragem. Sempre teve isso. Menos para alocar o recurso necessário naquilo que é para qualificar, capacitar e treinar os árbitros.

Sobre os grandes talentos da arbitragem brasileira, Márcio Rezende é enfático.

O Paulo César de Oliveira é um dos melhores que estão aí. É muito bom árbitro, um cara duro, sério. Um cara rigoroso, que não tem medo, que não se preocupa em ser politicamente correto. A CBF deveria fazer uma parceria com as federações, investir, mas o dinheiro tem que sair carimbado, porque, se não sair, ele some no percurso. Se não fizer isso, daqui dez anos, vamos discutir a mesma coisa.

Fonte: Globo Esporte

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